03/07/2011

O português correto de Tássia Regino

 Recebemos de nossa amiga e colaboradora Tássia Regino, esse texto em torno das discussões sobre a lingua pátria. Divirtam-se


Queridos Amigos e Amigas

Meu assunto deste final de semana é uma polêmica meio passada: o português correto.

Eu sou uma aprendiz do Zé da Luz, um maravilhoso poeta de cordel nordestino, que quando disseram pra ele que prá falar de amor precisava de um português correto, ele fez um lindo poema, chamado o Ai Se Sesse, gravado pelos meus conterrâneos do Cordel do Fogo Encantado, em que ele diz tudo o que precisa, comunica-se maravilhosamente, mas sem usar a língua culta.

Quem é aprendiz desta escola só podia olhar com estranhamento o escarcéu feito em torno do livro "Por uma Vida Melhor", lançado pelo MEC para alunos do curso de Educação de Jovens e Adultos (aqueles que aprenderam a falar, a se comunicar com um mundo e a a ajudar a construir o mundo com o seu trabalho, antes de aprender a norma culta). Por estranhar o escarcéu pesquisei sobre o tema e organizei os pensamentos com o que dizem  especialistas sobre o tema.

Mas minha pesquisa ficou guardada até receber um texto divertidíssimo, que acho vai arrancar boas risadas de vocês, porque seguindo a língua culta, se faz uma comunicação totalmente errada, ou no mínimo dúbia. São textos de Avisos de paróquias, afixados na entrada de igrejas, onde se encontra erros graves de escrita e linguagem, não porque erram na concordância, mas porque – diferentemente do Zé da Luz -  expressam desacordo entre a mensagem e a intenção.  Isso é comum, e bem mais complicado do que um livro didático em que se dialoga sobre o que a língua culta classifica como erro de concordância. Mas para um email de Bom Final de Semana, ele é bem divertido.

Enfim, eu também não li o Livro completo, mas de tudo que ouvi prefiro ficar com o José Miguel Wisnik (que além de compositor e cantor, é professor de Teoria Literária na USP) e com o Pasquale Cipro Neto.

Assim, como mimo de desejo de Bom Final de Semana, selecionei prá vocês: o divertido texto "AVISO AOS PAROQUIANOS"; as lindas canções cantadas em "português errado" pelos meus conterrâneos de Arcoverde, do Cordel do Fogo Encantado e os artigos do José Miguel Wisnik e do Pasquale Cipro Neto, sobre o Livro "Por uma Vida Melhor". Espero que vocês gostem !

Um Abraço e Bom Final de Semana,

Tássia

PS:  QUEM QUISER LER MAIS SOBRE O DEBATE EM TORNO DO LIVRO POR UMA VIDA MELHOR, TEM UM DOSSIÊ SOBRE O TEMA NO LINK: http://www.slideshare.net/hugoalbaquercus/dossie-por-uma-vida-melhor

 

AVISO AOS PAROQUIANOS

Para todos os que tenham filhos e não sabem, temos na paróquia uma área especial para crianças.

Quinta-feira que vem, às cinco da tarde, haverá uma reunião do grupo de mães. Todas as senhoras que desejem formar parte das mães,  devem dirigir-se ao escritório do pároco.

Interessados em participar do grupo de planejamento familiar, entrem pela porta de trás.

Na sexta-feira às sete, os meninos do Oratório farão uma representação da obra Hamlet, de Shakespeare, no salão da igreja. Toda a comunidade está convidada para tomar parte nesta tragédia.

Prezadas senhoras, não esqueçam a próxima venda para beneficência. É uma boa ocasião para se livrar das coisas inúteis que há na sua casa. Tragam os seus maridos

Assunto da catequese de hoje: Jesus caminha sobre as águas.
Assunto da catequese de amanhã: Em busca de Jesus.

O coro dos maiores de sessenta anos vai ser suspenso durante o verão, com o agradecimento de toda a paróquia.

O mês de novembro finalizará com uma missa cantada por todos os defuntos da paróquia.

O torneio de basquete das paróquias vai continuar com o jogo da próxima quarta-feira. Venham  nos aplaudir, vamos tentar derrotar o Cristo Rei!

O preço do curso sobre Oração e Jejum não inclui a comida.

Por favor, coloquem suas esmolas no envelope, junto com os defuntos que desejem que sejam lembrados.

 

 DONA NORMA

José Miguel Wisnik (professor de Teoria Literária na USP)
O Globo  de 21/05/2011

O imbróglio da vez é a discussão sobre o manual de ensino da língua portuguesa distribuído pelo MEC, chamado "Para uma vida melhor", da autoria de Heloisa Ramos. Li na imprensa, vi nos blogs e ouvi no rádio do carro vozes, desde sentenciosas a sardônicas e sarcásticas, dizendo que se tratava de uma descarada proposta de ensino do português pelo método invertido, preconizando o erro de concordância, o desvio sintático e o assalto à gramática. Criticava-se a adoção do "lulês" como idioma oficial da escola brasileira. Leio o capítulo do livro em questão e vejo, no entanto, que a autora se dedica nele, a maior parte do tempo, a mostrar a importância da pontuação, da concordância e da boa ortografia na língua escrita. Onde está o erro?
Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente, com ou sem rendimento político imediato. Na verdade, o livro assume, para efeitos pedagógicos, uma noção que se tornou trivial para estudantes de Letras desde pelo menos quando eu entrei no curso, em 1967. Os estudos linguísticos mostravam que a prática das línguas é sujeita a muitas variantes regionais, sociais, e que a chamada "norma culta", preconizada pelos gramáticos, é uma entre outras variantes da língua, não necessariamente a mais, ou a única "correta". Desse ponto de vista, científico e não normativo, procura-se contemplar a multiplicidade das falas, reconhecidas na sua eficácia comunicativa, sem privilegiar um padrão verbal ditado pelos segmentos letrados como único a ser seguido.
Discutirei adiante algumas consequências pedagógicas disso. Mas a que me parece inquestionável, e adotada com propriedade no livro de Heloisa Ramos, é a importância de não se estigmatizar os usos populares da língua, reconhecendo em vez disso a validade do seu funcionamento. É nessa hora que ela dava como exemplo a famigerada frase "Nós pega o peixe", ou, então, "Os menino pega o peixe". A autora não diz que é assim que se deve escrever. Mas também não deprecia a expressão: preconceitos à parte, é preciso reconhecer que no seu uso comum a frase funciona, porque a marca do plural no pronome ou no artigo é suficiente para indicar que a ação é exercida por um conjunto de meninos, e não por um só. Desse ponto de vista, eminentemente pragmático, nenhum erro.
A seguir, no mesmo espírito pragmático, o livro afirma claramente a importância de que a escola promova o domínio da norma culta, ligado à língua escrita, justificado pela sua necessidade em situações específicas (aqui virá a minha discordância). Dá exemplos de como corrigir um texto mal escrito, mostrando, dentro dos melhores critérios, como ele deve ganhar coesão interna, articulação sintática, clareza nos seus recortes (pontuação) e seguir os critérios ortográficos.
A grita contra o livro, por aqueles que, imagino, não o leram, é uma estridente confirmação, em primeiro lugar, daquilo que o próprio livro diz e, em segundo lugar, daquilo que ele não diz, mas que deveria dizer.
Afirmar cegamente, com alarme e com alarde, que o livro é um atentado, tornado oficial, à língua portuguesa, pelo respeito localizado que ele dá às variantes populares de fala que não usam extensivamente as flexões, isto é, as normas letradas de concordância, é um sintoma ignorante e disseminado de que se concebe a língua como um instrumento de prestígio, de privilégio e de poder.
Mais que isso, a defesa exaltada e capciosa da suposta correção linguística, desconsiderando todo o resto, é uma desbragada demonstração de ignorância em nome da denúncia da sua perpetuação. Culta, neste caso, é de uma incultura cavalar. O tom desinformado e espalhafatoso da denúncia encobre, mal, aquilo de que ele tenta fugir: o nosso analfabetismo crônico, difuso, contagiante.
Hélio Schwartsman, em compensação, assim como Cristovão Tezza no programa de Monica Waldvogel, disseram coisas importantes e equilibradas. Hélio lembra que a passagem do latim às línguas românicas, o português incluído, só se deu graças às províncias que passaram a falar um latim tecnicamente estropiado, sem as suas declinações clássicas. Sem essa dinâmica e o correspondente afrouxamento flexional, estaríamos até hoje falando latim e usando as cinco declinações.
O inglês, por sua vez, é muito menos flexional que o português. A frase "the boys get the fish", por exemplo, que funciona perfeitamente para marcar o plural, é, do ponto de vista estrutural, uma espécie de "nós pega o peixe" institucionalizado.
O horizonte do pragmatismo é o que me parece estreito, no entanto, no livro do MEC. O domínio da norma culta é justificado, nele, para que o falante tenha "mais uma variedade" linguística à sua disposição, para que não sofra preconceito, para que se desincumba em situações formais que assim o exigem. É muito pouco. A norma culta não é nem um mero adereço de classe nem apenas uma variedade à disposição do aluno para ele usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos. A educação pela língua não pode ser pensada apenas como um instrumento de adaptação às contingências. A escrita é um equipamento universal de apuro lógico, que está embutido na estrutura de uma língua dada. Mergulhar nela e nas exigências que lhe são inerentes é um processo de autoconsciência e um salto mental de grandes consequências.
Não se pode fazer por menos. Além de "Para uma vida melhor", tem que ser também "Para uma vida maior". Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente.

José Miguel Soares Wisnik é professor de Teoria Literária na USP.

 

 

O QUE DISCUTIR SOBRE O POLÊMICO LIVRO?

Pasquale Cipro Neto (Folha de S.Paulo – 26/05/2011 )



Definitivamente, não se pode dizer que esse livro "ensina errado". O cerne da questão é outro



Em 1988, eleita prefeita de São Paulo, a professora Luiza Erundina nomeou Paulo Freire secretário da Educação do município. Antes de assumir, o consagrado educador disse mais ou menos isto: "A criança terá uma escola na qual a sua linguagem seja respeitada (...) Uma escola em que a criança aprenda a sintaxe dominante, mas sem desprezo pela sua (...) Precisamos respeitar a sua sintaxe mostrando que sua linguagem é bonita e gostosa, às vezes é mais bonita que a minha. E, mostrando tudo isso, dizer a ele: "Mas para tua própria vida tu precisas dizer a gente chegou em vez de dizer a gente cheguemos". Isto é diferente, a abordagem é diferente. É assim que queremos trabalhar, com abertura, mas dizendo a verdade".
A declaração de Freire causou barulho semelhante ao que causou (e ainda causa) o livro "Por uma Vida Melhor", em que se mostram fatos relativos às variações linguísticas. Nele, dá-se como exemplo de norma popular a frase "Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado". Dado o exemplo, explica-se isto: "O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente". O livro prossegue: "Reescrevendo a frase no padrão culto da língua, teremos: "Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados". Você pode estar se perguntando: "Mas eu posso falar 'os livro'?" Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Há uma certa contradição na explicação, já que na frase popular a forma verbal ("estão") está no plural. Nessa variedade, o que se usa é "tá".
O caso abordado no livro é tecnicamente chamado de "plural redundante". Tradução: na forma culta ("Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados"), todos os elementos que se referem a "livros" (núcleo do sujeito) estão no plural (os, ilustrados, interessantes, estão, emprestados). É assim que funciona a norma culta do espanhol, do português, do italiano e do francês, por exemplo. Em francês, o plural redundante se dá essencialmente na escrita; na fala, singular e plural muitas vezes se igualam.
Em inglês, pluraliza-se o substantivo; o artigo, o possessivo e o adjetivo são fixos (na escrita e na fala). Quanto ao verbo, a terceira do singular do presente é diferente das demais pessoas em 99,99% dos casos; no pretérito e no futuro, há apenas uma forma para todas as pessoas.
O fato é que a ausência do plural redundante não se restringe à variedade popular do português do Brasil. Também é fato que, apesar de algumas afirmações pueris (""Mas eu posso falar "os livro'?" Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico"), em nenhum momento o livro nega a existência da norma culta, como também não se nega a mostrá-la e ensiná-la. Há vários exercícios em que se pede a passagem da norma popular para a culta.
Definitivamente, não se pode dizer que o livro "ensina errado". O cerne da questão é outro. O que expliquei sobre o exemplo do livro é assunto da linguística, que, grosso modo, pode ser definida como "estudo da linguagem e dos princípios gerais de funcionamento e evolução das línguas" ("Aulete"). A linguística não discute como deve ser; discute como é, como funciona. O que parece cabível discutir é se princípios de linguística devem ser abordados num livro que não se destina a alunos de letras, em que a linguística é disciplina essencial. Esse é o verdadeiro debate. Não faltam opiniões fortes dos dois lados. É isso.







Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente texto sra. Tâssia. Divertido e sêrio. Mas uma vez vemos como a imprensa distorce os fatos.