03/11/2008

Ponto de Vista

Tássia, recém-chegada de Moçambique, me enviou uma cronica escrita por Mia Couto, escritor moçambicano, tirada do seu liivro "Cronicando" escrito na década de 80. Após guerras, revoluções e anos de opressão, bem humorado escreveu:

A RUA DE PERNAS PRO AR

E foi o enormíssimo estrondo. No bairro, todos se inquietaram. Seria a guerra, ali chegada pé ante pé? Seriam morteiros, mortíferos? No estremunho dos lençóis fazia-se conta à morte.

Juvenal se levantou da cama, encandeou o escuro. A mulher, logo em reparos: ele que deixasse o mundo, ninguém lhe convidaria.

_ Não vês que há uma situação, mulher?

Ela insistia: nem situação não era. Quando muito aquilo seria um sonho, desses. Dona Evalinda costurava o marido ao seu medo. A escuridão, hoje em noite, é muito mortal. Mas, o Juvenal nem com isso. A esposa desfolhava o lençol em convite matreiro, lhe prometendo o mais quentinho da cama. Não, ele tinha que ir. Mesmo já cursara os treinos quase militares, desses destinados aos directores. A esposa riu desdenhosa. O Juvenal, com aquela vasta barriga, chumbara logo nos exercícios de placar. A pança charruava, em agrícolas funções.

_Tenho que ir ver o que se passa.

Evalinda lhe denunciou aquele esboço de valentia. A coragem dele era como os chifres do caracol: só saiam da boca para fora. Mas já Juvenal abrira a porta e rumara os passeios.

Na estrada lhe surgiu, extraordinário, o motivo do estrondo: um camião militar cambalhotado! As rodas ainda giravam bêbadas. Juvenal deu a volta ao veículo gigante, apreciando o insólito. Parecia um bicho verde-escuro nascido de um grande projecto, uma tartaruga prospectiva-indicativa. Olhou em volta: aquele acidente não tinha aparência. Não havia outra viatura, não havia desses postes do passeio que muito atrapalham a circulação nas estradas.

Juvenal espiou a cabina. O condutor, de cabeça para baixo, ainda remanescia ao volante. Parecia alheio à inversão da paisagem. Estivesse ele morto, suspeitou o residente. Fosse o motorista um mortorista. Mas a farda dele não transparecia mancha de sangue. Juvenal bateu no vidro, chamando a atenção do descondutor. Era um tipo de dimensões, a condizer com o camiãozarrão. Tão grande ele era que o uniforme figurava mais ser um unidisforme.

O homem se incomodou, desperto pelos toques na vidraça. Fingiu travar, rodou o volante como se ainda conduzisse. Que era? Como ousara aquele pedestre interromper a sua viagem? O pobre Juvenal logo começou de desculpar-se, tal era a verdade daquele motorista, posto em máxima dignidade, mesmo se de cabeça para baixo. O sinistrado entoou ameaças:

_ Não vês que somos um cortejo?

_ Um cortejo, pois claro, admitiu logo o Juvenal.

O senhor me seja doador de perdões, foi a minha esposa que me mandou ver o barulho.

_ Que barulho?

Pois, qual barulho? Ilusão da mulher, a Evalinda, ela devia de estar a ouvir as suas próprias mexas-mexas. Porque aquela noite, tão tranqüilinha, só oferecia silêncios. Juvenal rastejava submissionário.

_ Olha, ali está ela, de roupão. Vai para dentro, Evalinda, vai que aqui está cheio de cacimbo.

E sorriu-se para o condutor às avessas. Confessou: por momentos, acreditara que aquele camião se tivesse virado. Não, calma. Não estou a dizer que está. O que se passa, afinal é que a rua está de pernas para o ar. Aconteceu.

_Estou pedir guardar o camião.

Juvenal se admirou: de onde vinha aquela voz tão miúda? Olhou, era um moluwenw. O menino vestia-se de rasgões. _ Vai-te daqui, miúdo, suca, não incomoda o cortejo! Vai antes que apanhes.

_ Esse é seu filho? – perguntou-se o acidentado.

Meu filho? Juvenal se indignou: será que tenho cara de calamitoso? Eu não sou um qualquer, espreite ali a minha fachada residencial, veja a garagem, aquele EME-ele-esse , novinho em página?

_Patrão, estou a pedir guardar o camião.

O motorista, então, saiu do camião. Deu uma cambalhota no ar, sacudiu os ombros, alisou a farda. Juvenal tentou uma simpatia:

_ Já o sangue lhe descia na cabeça?

O outro nem ouviu. Inspecionava os vizinhos que, agora, se concentravam no passeio. Falou, com voz patenteada: então vocês não se envergonhavam, numa altura dessas, em véspera do Congresso, apresentarem uma rua virada ao contrário? Cabisbaixinhos, os moradores se condoíam.

_ E agora, por punição, vocês todos vão meter esse camião de cabeça para baixo.

O Juvenal, predispronto, incitou a multidão a ser participassiva.

_Vamos gente. Vamos endireitar o camião.

Endireitar, não, rectificou o motorista. Virar, conforme a alteração da rua. E todos, homens e mulheres, se aplicaram a revirar o gigante de ferro. Concluída a obra, o motorista se meteu no veiculo e acelerou fumos. O camião se fez ao escuro.

Os vizinhos, emudecidos, trocavam muito espanto. Nunca ali se juntou tanto sentimentos. Os mais velhos suspiravam: pudessem eles repreender a vida! Foi então que, sobre o silêncio, se fez ouvir o esganiço do menino:

_Patrões, estou pedir guardar a rua.

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