Tássia, recém-chegada de Moçambique, me enviou uma cronica escrita por Mia Couto, escritor moçambicano, tirada do seu liivro "Cronicando" escrito na década de 80. Após guerras, revoluções e anos de opressão, bem humorado escreveu:
A RUA DE PERNAS PRO  AR
E foi o enormíssimo  estrondo. No bairro, todos se inquietaram. Seria a guerra, ali chegada pé ante  pé? Seriam morteiros, mortíferos? No estremunho dos lençóis fazia-se conta à  morte.
Juvenal se levantou  da cama, encandeou o escuro. A mulher, logo em reparos: ele que deixasse o  mundo, ninguém lhe convidaria.
_ Não vês que há uma situação, mulher?  
Ela insistia: nem  situação não era. Quando muito aquilo seria um sonho, desses. Dona Evalinda  costurava o marido ao seu medo. A escuridão, hoje em noite, é muito mortal. Mas,  o Juvenal nem com isso. A esposa desfolhava o lençol em convite matreiro, lhe  prometendo o mais quentinho da cama. Não, ele tinha que ir. Mesmo já cursara os  treinos quase militares, desses destinados aos directores. A esposa riu  desdenhosa. O Juvenal, com aquela vasta barriga, chumbara logo nos exercícios de  placar. A pança charruava, em agrícolas funções.
_Tenho que ir ver o que se  passa.
Evalinda lhe  denunciou aquele esboço de valentia. A coragem dele era como os chifres do  caracol: só saiam da boca para fora. Mas já Juvenal abrira a porta e rumara os  passeios.
Na estrada lhe  surgiu, extraordinário, o motivo do estrondo: um camião militar cambalhotado! As  rodas ainda giravam bêbadas. Juvenal deu a volta ao veículo gigante, apreciando  o insólito. Parecia um bicho verde-escuro nascido de um grande projecto, uma  tartaruga prospectiva-indicativa.   Olhou em volta: aquele acidente não tinha aparência. Não havia  outra viatura, não havia desses postes do passeio que muito atrapalham a  circulação nas estradas.
Juvenal espiou a  cabina. O condutor, de cabeça para baixo, ainda remanescia ao volante. Parecia  alheio à inversão da paisagem. Estivesse ele morto, suspeitou o residente. Fosse  o motorista um mortorista. Mas a farda dele não transparecia mancha de sangue.  Juvenal bateu no vidro, chamando a atenção do descondutor. Era um tipo de  dimensões, a condizer com o camiãozarrão. Tão grande ele era que o uniforme  figurava mais ser um unidisforme.
O homem se  incomodou, desperto pelos toques na vidraça. Fingiu travar, rodou o volante como  se ainda conduzisse. Que era? Como ousara aquele pedestre interromper a sua  viagem? O pobre Juvenal logo começou de desculpar-se, tal era a verdade daquele  motorista, posto em máxima dignidade, mesmo se de cabeça para baixo. O  sinistrado entoou ameaças:
_ Não vês que somos  um cortejo?
_ Um cortejo, pois  claro, admitiu logo o Juvenal.
O senhor me seja  doador de perdões, foi a minha esposa que me mandou ver o  barulho.
_ Que  barulho?
Pois, qual barulho?  Ilusão da mulher, a Evalinda, ela devia de estar a ouvir as suas próprias  mexas-mexas. Porque aquela noite, tão tranqüilinha, só oferecia  silêncios. Juvenal rastejava submissionário.
_ Olha, ali está  ela, de roupão. Vai para dentro, Evalinda, vai que aqui está cheio de  cacimbo.
E sorriu-se para o  condutor às avessas. Confessou: por momentos, acreditara que aquele camião se  tivesse virado. Não, calma. Não estou a dizer que está. O que se passa, afinal é  que a rua está de pernas para o ar. Aconteceu.
_Estou pedir  guardar o camião.
Juvenal se admirou:  de onde vinha aquela voz tão miúda? Olhou, era um moluwenw. O menino  vestia-se de rasgões. _ Vai-te daqui,  miúdo, suca, não incomoda o cortejo! Vai antes que  apanhes.
_ Esse é seu filho?  – perguntou-se o  acidentado.
Meu  filho? Juvenal se  indignou: será que tenho cara de calamitoso? Eu não sou um qualquer, espreite  ali a minha fachada residencial, veja a garagem, aquele EME-ele-esse  , novinho em página?
_Patrão, estou a  pedir guardar o camião.
O motorista, então,  saiu do camião. Deu uma cambalhota no ar, sacudiu os ombros, alisou a farda.  Juvenal tentou uma simpatia:
_ Já o sangue lhe  descia na cabeça?
O outro nem ouviu.  Inspecionava os vizinhos que, agora, se concentravam no passeio. Falou, com voz  patenteada: então vocês não se envergonhavam, numa altura dessas, em véspera do  Congresso, apresentarem uma rua virada ao contrário? Cabisbaixinhos, os  moradores se condoíam.
_ E agora, por  punição, vocês todos vão meter esse camião de cabeça para  baixo.
O Juvenal,  predispronto, incitou a multidão a ser participassiva.
_Vamos gente. Vamos  endireitar o camião.
Endireitar, não,  rectificou o motorista. Virar, conforme a alteração da rua. E todos, homens e  mulheres, se aplicaram a revirar o gigante de ferro. Concluída a obra, o  motorista se meteu no veiculo e acelerou fumos. O camião se fez ao  escuro.
Os vizinhos,  emudecidos, trocavam muito espanto. Nunca ali se juntou tanto sentimentos. Os  mais velhos suspiravam: pudessem eles repreender a vida! Foi então que, sobre o  silêncio, se fez ouvir o esganiço do menino:
_Patrões, estou  pedir guardar a rua.
 
 
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